Ponto de vista

Opinião da Crítica Independente (Parte 3)

Entrevista com Cléber Eduardo, Leonardo Mecchi, Eduardo Valente

Nas primeiras partes desta entrevista, os editores da Cinética discutiram um pouco sobre a qualidade dos filmes após o fechamento da Embrafilme, levantaram questões a respeito da formação de público de cinema no país e deram suas opiniões sobre o papel da crítica indepentente. Agora, você poderá conhecer um pouco da curadoria da Mostra de Tiradentes, da relevância do Prêmio Aurora e sobre as táticas de guerrilha.

Mostra de Tiradentes

Cléber Eduardo: O convite para a Mostra de Tiradentes foi surpreendente. Eu estava no Festival de Brasília, em novembro de 2006, logo depois da Mostra de São Paulo. Daí toca o telefone e era a Raquel Hallak, uma das sócias da Universo Produção, responsável pelos três festivais de Minas Gerais - que são o de Tiradentes, Ouro Preto e Belo Horizonte. Fazia dois meses que eu tinha saído da Revista Época e eu tinha ido ao Festival de Tiradentes duas vezes como debatedor. Aí pensei que ela queria falar comigo para me chamar para alguma oficina de crítica, inclusive eu estava pensando em enviar para ela um programa de oficina. Foi então que ela me disse que gostaria que eu fosse curador do festival. Até esta época, não tinha nenhum contato com ela, eu nunca tinha falado com ela. A princípio, ela queria que eu fizesse a curadoria de longas e curtas-metragens, mas como eu tinha muito pouco tempo de assistir os filmes inscritos e convidar outros, chamei o Eduardo Valente, para a de curtas, pois ele vê muito mais curtas que eu. Agora, já fazem dois anos que estamos trabalhando juntos. Na primeira curadoria de Tiradentes que eu fiz, era a décima edição e estavam tematizando estes dez anos de produção. Por isso, tinha uma eleição, para melhor ator, atriz, diretor, e outros, para fazer estas homenagens, então o tema estava dado, não fui eu quem escolheu. Eu só fiz realmente a seleção dos filmes. Naquele ano, não daria muito para criar nenhum tipo de recorte, pelo menos com os filmes longas-metragens. Aqueles eram realmente os melhores filmes disponíveis. Acho que no primeiro ano, o que eu comecei a desenvolver, e que agora talvez isso venha a ser a cara do festival é tentar encontrar um espaço, dentro da programação, para filmes estranhos, ou que eu tinha certeza de que se eles não fossem exibidos ali, talvez não fossem exibidos em nenhum outro lugar. É usar do inevitável poder de decidir o que passa e o que não passa para beneficiar determinados projetos que, independentemente de eu gostar ou não, um determinado de pessoas que estaria naquelas salas deveriam, pelo menos, conhecer. Eles deveriam ser conhecidos para além dos filmes já legitimados daquela temporada, nos festivais do Rio de Janeiro, Festival de São Paulo, Brasília. O Festival de Tiradentes poderia, então, dar este primeiro “diplominha” a estes filmes que não iriam recebê-lo em outro lugar. Na segunda curadoria, que seria a da décima primeira edição, aí sim foi um trabalho mais amplo. Eu lancei o tema do jovem, da juventude em trânsito, a programação, de certa maneira, respondeu a este tema, embora eu não tenha ido buscar primeiro o tema e depois os filmes. O tema surgiu por que eu estava vendo que, naquele momento, este universo estava sendo tratado por um número razoável de filmes e que, por isso, seria interessante. O tema meio que se impôs. Aí, com uma contribuição expressiva do Eduardo Valente, criamos o prêmio Aurora, para diretores no início de trajetória, no primeiro, segundo ou, no máximo, terceiro longa, para configurar uma programação bastante específica, de olhar, destacar e discutir a nova geração que está chegando, para pensar o que há nestes filmes, quais estilos estão sendo desenvolvidos, quais os universos temáticos, que formas de captação estão sendo usados.

Cléber Eduardo: Por exemplo, há diretores que não fizeram seus trabalhos com recursos da Lei do Audiovisual, como o Kleber Mendonça, que ficou dez anos para fazer um documentário. Ele fez as filmagens durante suas viagens para os festivais e o documentário é muito em cima de entrevistas com críticos e cineastas, que ele encontrava nestas ocasiões. Outro exemplo é o Bruno Safadi, que também tem uma produção mais alternativa para viabilizar o longa dele, ou o Belmonte, que fez filme sem nenhum edital, se endividou. São filmes que a gente está apostando que são projetos de autor, no sentido de que o cara vai lidar com cinema para desenvolver o seu projeto cinematográfico, e não para atender a demanda do mercado. Não é qualquer primeiro filme que interessa, são filmes que desafiam o espectador, que não fazem o caminho mais fácil e que tenham um certo grau de entrega e sacrifício, no sentido amplo do termo. Você precisa estar muito engajado, para abrir mão deste diálogo fácil com a platéia. De uma certa forma, apesar de querer ser amado pelo que você faz, ao fazer esta opção você será amplamente rejeitado por uma grande parcela que poderia gostar do seu filme. Me interessam muito estes projetos de cinema, são sensibilidades muito especiais, singulares, fogem do senso comum. Eu como curador, e eu só posso falar isso enquanto curador, não posso falar que este é um projeto da Mostra de Tiradentes para a sua eternidade, mas certamente será enquanto eu for curador – e se não for assim eu não serei - durante o tempo que eu estiver lá, a mostra vai, dentro deste Prêmio Aurora e em várias sessões fora dele, buscar filmes com esta ambição de não agradar apenas o espectador, mas de desafiá-lo e estimulá-lo de uma maneira menos óbvia. Além disso, eu costumo dizer que adoro ter o que chamo de “filme terrorista”, que é aquele que eu não tenho a menor idéia do que vai acontecer na sessão. Pode ter a maior surpresa do mundo, como foi o caso do Conceição. Na primeira vez que eu vi eu estava lá em Tiradentes. É um filme do Daniel Caetano, da Contracampo, e a platéia de 400 pessoas começou a aplaudir, com meia hora de filme, uma seqüência meio trash, ele tem essa pegada mais marginal. A partir dali, o filme comprou a platéia. Neste momento, a Rachel Hallak entrou na sala, preocupada com o que estava acontecendo olhou e disse: “Eu não estou entendendo mais nada”. Eu gosto disso, destes filmes que há o risco de ficar só dez pessoas até o final da projeção. Neste ano, o Sábado à Noite fez este papel, e acabou ganhando o Prêmio do Júri Jovem. Esta é também uma iniciativa nova no festival, de ter um júri de pessoas de 18 a 25 anos, que passam antes por um laboratório, onde eu dou aulas de crítica e história cinematográfica e eles escrevem textos sobre filmes discutidos e, a partir dali são escolhidos cinco para compor o júri. Este foi um procedimento que ocorreu no primeiro ano e, neste segundo ano, ele terá uma importância maior, pois a composição deste júri será divulgada no último dia do Festival de Belo Horizonte.

Eduardo Valente: Este Prêmio tem uma importância grande. Apesar de ser a única competição em Tiradentes, não teve o clima de competição daninha e banal, que às vezes ocorre em Gramado e Brasília, justamente por que as pessoas estão na mesma batida, de troca. São filmes que a gente sabe que no mercado terão dificuldades, se eles não existirem desta maneira, ou seja, para uma platéia pequena, mas importante, eles estarão fadados a não existir mesmo, inclusive historicamente. Se ninguém ver, eles não vão existir. Ao colocar estes filmes em foco, há um movimento político muito importante, de dar a chance destes filmes existirem. Por isso, este momento foi importante neste primeiro ano e há um desejo de projetar isso para frente. Mas é claro que isso tudo depende de existirem, a cada ano, seis ou sete filmes bons, mas acho que é o caminho. A Mostra de Tiradentes tem uma importância, que outras mostras têm, que é de fazer chegar a produção brasileira a uma série de lugares aos quais esta produção não chega.

Cléber Eduardo: Antes, a Mostra de Tiradentes era o ponto final para muitos filmes, agora a tendência é que ela se torne o começo. Uma das coisas que mais a gente mais ouviu em Tiradentes era "certamente aqui eu tive a minha melhor sessão", ou "não vou ter mais uma sessão tão boa quanto esta daqui". Isso porque lá você tem uma hora de debate, em um auditório de 150 pessoas, sentadas nos degraus das escadas, querendo discutir com o diretor. Às vezes, em nível excessivamente alto, pois as discussões estão cada vez mais intelectualizadas. As pessoas estão com uma sede de discussão com o diretor que não vão encontrar em outro lugar. Este contato e nível da discussão, diferente do que ocorre nas coletivas para imprensa, que giram em torno de uma banalidade. O que eu propus para o Bruno Safadi, por exemplo, num debate foi, porque ele não estreava os filmes na Mostra de Tiradentes? Afinal, por que queimar o filme em mostras como a de São Paulo ou do Rio de Janeiro, nas quais ele vai passar junto com cento e tantos filmes no mesmo dia, e dificilmente um cinéfilo “mostreiro” vai assistir a um filme brasileiro quando ele tem o shopping center de cineastas internacionais ali na vitrine. A questão é, qual é o melhor lugar para eu fazer o lançamento do meu filme? É uma plataforma de lançamento mesmo. Quando eu escolhi o filme do Bruno para participar, e nem era dos meus preferidos, ele nem existiu nas outras mostras, não havia sido repercutido. Assim como aconteceu com o Ainda Orangotangos e o Conceição, em que as pessoas aplaudiram no meio e tal. Foram filmes que eu vi no festival do Rio, com 20 pessoas na sessão, aquela coisa fria, em que ninguém comenta nada depois e o filme sai de lá meio fracassado. Saindo da coisa mais prática e vendo de uma forma, digamos assim, meio mística, acho que é uma energia ruim para o filme estrear em um evento que não dá a mínima. Assim, Tiradentes torna-se uma ótima plataforma para estes filmes menores, que vão ser o quintal de qualquer outro evento, mas que ali serão a sala de estar. É o que o Valente falou, os diretores novos precisam saber que é bacana estar em lugares como este. Em relação ao ano anterior, já houve uma mudança, que eu senti só com o número de inscritos de longa-metragem, que saltou de 23 para 68, justamente em uma época em que os grandes nomes produtores do cinema brasileiro estavam em crise. O que eu acho é que a tendência será termos cada vez menos convidados e, cada vez mais selecionados, inscritos.

Eduardo Valente: Tiradentes é mais um foco da guerrilha.

Cléber Eduardo: Mas neste caso, é um foco de guerrilha que está no poder. Claro que o tamanho deste poder é menor do que outros, mas tem o poder de decidir, escalar críticos. É um poder de interferência nos discursos, de decidir quem fala e qual tipo de cinema vai ser mais valorizado ou não. Tem que saber lidar com isso, tem que desconfiar do meu poder e dos demais. Você tem tomar cuidado para não cair na própria dinâmica do jogo de poder, por que ela existe.

Novembro de 2008