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Uma perspectiva histórica do cinema brasileiro

Os marginais assumem a vanguarda cinematográfica

Na mesma época em que o Cinema Novo se desenvolvia e o regime militar estava em um dos seus mais difíceis períodos, com o decreto do AI-5, uma nova vertente cinematográfica, o Cinema Marginal, começava a propor outras técnicas e discussões a partir dos filmes A Margem, de Ozualdo Candeias, e de O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. Filiados a esta linha estética foram os diretores Júlio Bressane, Andréa Tonacci, João Silvério Trevisan entre outros.

Com influências dos neo-expressionistas como Orson Welles; do modernismo, nas obras de Oswald de Andrade; e produzindo contemporaneamente com artistas plásticos conceituais e músicos tropicalistas, os filmes possuíam uma fragmentação narrativa, originária da proposta antropofágica modernista, em contraposição aos extensos plano-seqüência dos cinemanovistas. Jean-Claude Bernardet, em análise de Matou a Família e Foi ao Cinema, de Bressane, faz uma reflexão que pode ser ampliada para as narrativas em geral do Cinema Marginal. Sendo assim, seria possível afirmar que a montagem destes filmes poderia parecer confusa e aleatória a primeira vista, mas, na verdade, apenas condensam informações e constrói elipses, seguindo o modelo da narrativa tradicional. A única diferença é que na narrativa clássica o objeto da elipse normalmente é mais óbvio, de menor importância ou introduz um suspense a ser resolvido durante o filme.

Outra característica desta geração foi o metacinema - uso de referência a outros filmes. No filme de Bressane o personagem Antero faz uma alusão ao Cão Andaluz, de Buñuel, quando passeia uma navalha pelo seu corpo. Já Sganzerla, em O Bandido da Luz Vermelha, remete ao Coisas Novas, filme do início do cinema sonorizado no Brasil. Segundo Ismail Xavier, esta técnica permite refletir sobre contextos diferentes e dialogar com referências do passado, “discutindo o cinema dentro do cinema” e que “um dado forte deste processo é a referência à chanchada clássica, retomada num registro romântico (Diegues, Carvana), conceitual (Bressane), cômico-paródico (Ivan Cardoso) ou irônico-cabotino (Sganzerla)” (13) XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p.96.. O filme citado de Sganzerla também utiliza os batuques afro-brasileiros de Terra Em Transe, o que gera dois efeitos ambíguos. Segundo Bernardet, “aceitando essa interpretação, o duplo sentido da citação musical estabelece relações de assimilação e rejeição, de homenagem e repúdio, de amor e de morte” (14) BERNARDET, Jean-Claude. O vôo dos anjos: Bressane, Sganzerla. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 63..

Pretendia-se revolucionar a linguagem cinematográfica deixando para segundo plano a militância e a conscientização política, pois estes diretores estavam mais interessados em experimentalismos. Sganzerla, por exemplo, preferiu fazer filmes com formato ágil, já Candeias e Bressane optaram por explorar ritmos mais lentos e silêncios prolongados. Estas características de diferenciação de estilo dos diretores faziam parte da concepção de “cinema de autor”, presente no Cinema Novo por influência da nouvelle-vague. Além disso, o cinema deste movimento se voltou para a representação dos centros urbanos, em convergência com alguns filmes do Cinema Novo.

O Cinema Marginal buscou formas alternativas de financiamento com filmes de baixo orçamento. Uma das suas principais contribuições foi a utilização das câmeras super-8, que ofereciam maior agilidade e facilidade de revelação do material, diminuindo os custos de produção. Sganzerla e Bressane optaram por abrir uma produtora própria. Alguns destes diretores produzem até hoje e ainda carregam as propostas e características do Cinema Marginal.

Em virtude do pouco dinheiro investido, o gênero do terror conseguiu se ampliar, já que não precisavam de iluminação forte e cenários elaborados. Um dos maiores representantes foi José Mojica Marins, diretor em atividade desde 1964, com À Meia Noite Levarei Sua Alma, e seu personagem Zé do Caixão. No exterior Mojica entrou para grandes circuitos, participou de festivais e ganhou prêmios, mas no Brasil, seus filmes não fizeram o mesmo sucesso e são classificados como filme-B ou trash.

Surge neste período também outro gênero que retomava aspectos da chanchada, inserindo cenas e temáticas de apelo sexual, apesar de não ter cenas de sexo. Assim como no Cinema Marginal, as pornochanchadas foram financiadas por iniciativas privadas o que resultou em filmes com maior qualidade técnica. Os filmes mais importantes foram As Mulheres Amam Por Conveniência, As Cangaceiras Eróticas, ambos de Roberto Mauro, e A Ilha dos Prazeres Proibidos, de Carlos Reichenbach. Durante os 10 anos de produção deste cinema conhecido como “A Boca do Lixo” foram feitos mais de 700 filmes, caracterizando a década como o único momento da nossa história que mais se aproximou de uma verdadeira indústria cinematográfica.

Parte da população, em geral, setores da classe média, que se mobilizaram em passeatas para demonstrar sua insatisfação com o conteúdo das produções era contrária às pornochanchadas. De nada adiantou, o público continuou crescendo até a década de 80, quando a Boca do Lixo entrou em crise, impossibilitada de concorrer com a nova safra de filmes que surgia. Coisas Eróticas, de Rafaelli Rossi, inaugurou este momento como o primeiro filme brasileiro com cenas de sexo explícito, bateu o recorde de 4 milhões de espectadores e, segundo o Ministério da Cultura, e foi o 11 º filme nacional mais assistido de nossa história.

Com a abertura política, alguns temas considerados tabus durante a ditadura e censurados pelos aparelhos do Estado voltaram à discussão. O emblemático Pra frente, Brasil, de Roberto Farias, conta como um cidadão confundido com um militante político foi preso e torturado pela ditadura enquanto o país torcia pela seleção na Copa de 1970. Já a peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles Não Usam Black-tie, foi filmada por Leon Hirszman, retomando a discussão sobre o operariado. Os cineastas Silvio Black e Arnaldo Jabor, ambos em atividade desde os anos 70, obtiveram grandes bilheterias e ficaram reconhecidos internacionalmente.

Apesar da ditadura ter afrouxado a censura aos filmes de cinema, o mesmo não ocorreu com a circulação destes na televisão, considerada uma ameaça mais perigosa, por alcançar um público maior. Pixote, de Hector Babenco, e outros filmes contemporâneos a ele foram liberados para a televisão anos depois de terem passado nos cinemas, com a indicação de diversos cortes e horários restritivos de exibição, após às 21h ou 23h, dependendo do parecer do censor. Um dos efeitos da censura foi a tentativa de reaproximação dos diretores com o grande público da qual Xica da Silva, de Carlos Diegues, e Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto são exemplos. Neste sentido, um dos maiores fenômenos de bilheteria da década foi a série, com mais de vinte filmes, dos Trapalhões, grupo humorístico que existia desde 1966 em programa da TV Excelsior. Já nos anos 90, o cinema nacional entraria em uma crise de produção que tem reflexos até hoje.

Outubro de 2008