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Uma perspectiva histórica do cinema brasileiro

Da primeira sessão aos ciclos regionais

“A escolha de uma filmagem como marco inaugural do cinema brasileiro, ao invés de uma projeção pública, não é ocasional: é uma profissão de fé ideológica. Com tal opção, os historiadores privilegiam a produção, em detrimento da exibição e do contato com o público.” Jean-Claude Bernardet. (1) BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia clássica do Cinema Brasileiro: metodologia e pedagogia. São Paulo: Annablume, 1995. p. 26.

O cinema no Brasil tem pouco mais de cem anos e sua história não é tão atrasada com relação ao cinema mundial, tendo em vista que o primeiro cinematógrafo chegou ao Rio de Janeiro em 1896, aproximadamente dezoito meses depois do seu lançamento oficial em Paris, em sessão pública. O novo invento gerava curiosidade e atraía pessoas que se assustavam com o efeito de ilusão provocado pelas imagens de ondas do mar que ameaçavam invadir a sala de exibição. A primeira sala foi inaugurada no Salão das Novidades Paris, no Rio de Janeiro e, em apenas dois meses, algumas delas conseguiram um público de 52 mil pessoas – número bastante elevado, admitindo que dos 78 filmes nacionais lançados em 2007, apenas 18 conseguiram mais de 56 mil espectadores durante um ano inteiro de exibição.

No final do século XIX, o Brasil havia passado pelos primeiros surtos de modernização, com a implantação das estradas de ferro e indústrias têxteis, a escravidão já havia sido abolida e a república proclamada, em 1891. O Rio de Janeiro era o centro de toda a política, economia e cultura, desde a chegada da Família Real, em 1808, tornou-se a capital e concentrava todas as novidades vindas do exterior. Não é à toa que um dos primeiros filmes em terras brasileiras tenha sido de Afonso Segreto, um imigrante italiano que registrou, em 1898, imagens da Baía de Guanabara quando retornava de uma de suas viagens para a Europa. Alguns autores acreditam que este é um mérito de José Roberto da Cunha Salles com sua criação denominada “fotografias vivas”, uma máquina que projetava imagens em movimento. Sua primeira série de filmagens não durou nem um segundo e retratava as ondas em um píer, mas para tentar a patente do invento precisou entregar onze fotogramas, hoje perdidos. Acredita-se que um dos primeiros longas-metragens de ficção brasileiro foi Os Estranguladores (1906), de Antônio Leal cujo enredo se baseava em um assassinato de grande repercussão. A Mala Sinistra, O Crime da Mala e outros filmes do gênero, além de Nhô Anastácio Chegou de Viagem, uma das nossas primeiras comédias, também contribuíram para a popularização do cinema.

A seleção do marco inaugural no nosso cinema gera ainda muitas polêmicas. Jean-Claude Bernardet acredita que tenha se criado uma versão mítica da nossa história cinematográfica voltada para a produção e menos para a distribuição e exibição. Sidney Ferreira Leite retoma esta idéia e afirma que “em linhas gerais, o mito fundador do cinema nacional contém um dos elementos estruturais para a compreensão das dificuldades de consolidação da indústria cinematográfica no Brasil: os problemas de comunicação entre os produtores das mensagens cinematográficas, em especial os diretores dos filmes, e os receptores dessas mensagens, ou seja, os espectadores brasileiros.” (2) LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro- das origens à Retomada. São Paulo: Fudnação Perseu Abramo, 2005. p. 23.

Com o desenvolvimento das redes de energia elétrica foram abertas novas salas de cinema, ampliando a circulação dos filmes. Segundo Paulo Emílio Salles Gomes, a abertura de salas tanto no Rio quanto em São Paulo e a realização de muitos curtas-metragens de atualidades permitiram o avanço da produção de filmes longas-metragens de ficção. Esta foi uma época em que foram feitas muitas adaptações de clássicos da literatura, como O Guarani, A Viuvinha, Iracema e Ubirajara, obras de José de Alencar, filmadas por diferentes diretores entre 1916 e 1919.

A produção de filmes em escala industrial em países tecnicamente mais desenvolvidos do que o Brasil foi uma das causas de uma crise de produção de filmes que começou em meados de 1912, resultando na produção de um único filme de ficção durante o ano. Ao mesmo tempo, com a 1ª Guerra Mundial a importação de fitas virgens ficou mais difícil. Foi neste contexto de destruição dos países europeus que o cinema norte-americano se consolidou no mercado mundial. Com a entrada maciça no Brasil de distribuidoras como a Fox, a Paramount Films, a Universal e a Warner Brothers, ficou ainda mais complicado divulgar os poucos projetos que conseguiam ser concluídos. Segundo Paulo Emílio, “a média anual entre 1912 e 1922 foi de seis filmes. Da quase paralisação dos anos 1912-14, chegamos a uma produção relativamente abundante de dezesseis filmes em 1917, para haver uma brusca queda no ano seguinte, com uma medíocre reação até 1922” (3) GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. Rio de janeiro: Paz e Terra. 1980. p. 28..

O cinema nacional sobreviveu com a produção de documentários e cinejornais que conseguiam financiar a produção de filmes ficcionais, como Fragmentos da Vida (1929), preparando terreno para os ciclos regionais que aconteceriam nos anos 20. Os cinejornais começaram a ser exibidos semanalmente, a partir de 1916, e tratavam de temas do cotidiano, políticos, econômicos, artísticos ou de entretenimento. Assim como os atuais noticiários, tinham caracterísitcas jornalísticas, porém, como algumas matérias eram encomendadas, acabavam com um tom propagandístico. Com a inauguração das redes de televisão e a criação dos telejornais, os cinejornais publicavam fatos noticiosos atrasados e perderam popularidade. Foram exibidos até meados de 50, com exceção de alguns, que se estenderam até os anos 70.

Na década de 20 a indústria cafeeira incentivou a modernização do país e a urbanização de cidades, possibilitando a produção de filmes nos chamados “ciclos regionais” de Ouro Fino, Campinas, Guaranésia e Manaus, além de Recife e Cataguases, considerados os dois mais importantes. Como não existia uma política cultural cinematográfica, cada ciclo evoluiu de uma maneira: enquanto em Cataguases as iniciativas no campo do cinema eram isoladas, de pessoas em particular, no Recife ocorreu um movimento coletivo.

Na cidade mineira, o cineasta Humberto Mauro começou com o curta-metragem Valadão: O Cratera, que contava a história de uma mocinha seqüestrada por um bandido. Em 1926, ele fundou a Phebo Sul America Film, em sociedade com dois comerciantes da cidade, produtora pela qual lançou Na Primavera da Vida, Tesouro Perdido e Brasa Dormida. Já no ciclo pernambucano, os filmes foram produzidos por Edson Chagas, Ary Severo, Jota Soares e Gentil Roiz, com a fundação da Aurora Filmes e Olinda Filmes. O sucesso do ciclo na cidade fez com que diversas salas fossem construídas para a projeção dos filmes. Os longas-metragens mais importantes foram Retribuição, Aitaré da Praia - com uma temática regionalista sobre os jangadeiros - e Cenário da Vida, da última fase. Os ciclos contribuíram para manter a produção de filmes e consolidar os primeiros diretores brasileiros, como Humberto Mauro, que se tornou um dos nossos importantes cineastas, influenciando outras gerações. Desta mesma época há registros de filmagens também em Barbacena, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Maceió, Porto Alegre entre outras localidades, o que indica que também havia produção fora dos ciclos.

Com a entrada de filmes estrangeiros falados no nosso circuito, mais uma vez, a concorrência ficou impossível. O primeiro filme inteiramente sonorizado Acabaram-se Os Otários, de Luiz de Barros, foi lançado apenas em 1929. Outros filmes com som começaram a ser feitos, porém, ainda demorou até a tecnologia ser amplamente difundida.

Em 1930, Adhemar Gonzaga inaugurou a Cinédia, primeiro estúdio do país. Um dos seus primeiros filmes foi A Voz do Carnaval, de Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro, que combinava cenas de carnaval de rua com apresentações de cantores. A novidade, no entanto, era a técnica de sincronização dos sons, captados diretamente das ruas. A empresa também foi responsável no mesmo ano pelo lançamento de Ganga Bruta, de Humberto Mauro. Considerado um dos melhores filmes nacionais por Glauber Rocha, discute a violência, valores morais e a repressão sexual, inovando com diversas câmeras, em oposição aos outros que usavam apenas uma em cada cena. Foi gravado mudo e sonorizado com algumas falas somente durante a edição. No ano seguinte, Mário Peixoto lançou Limite, famoso por sua estética experimental que evocava o cinema mundial de vanguarda da época.

Agosto de 2008