Ensaios

A trajetória de uma estrela e o desencanto de uma nação

Entreatos (2004), João Moreira Salles
Peões (2004), Eduardo Coutinho

Há seis anos começava a corrida pela presidência da república do Brasil. Naquela época, João Moreira Salles e Eduardo Coutinho pretendiam fazer, juntos, um documentário acompanhando a campanha eleitoral dos candidatos com mais votos nas pesquisas. De um lado, José Serra (PDSB) e, de outro, Luiz Inácio da Silva, o Lula (PT). No entanto, Coutinho preferiu colocar em prática um projeto mais antigo, de trabalhar com operários, da região do ABC paulista, que participaram das greves de 1979 e 1980. A parceria resultou em Entreatos (2004) e Peões (2004), documentários que abordam os desejos, esperanças e desilusões de uma nação, refletida e personificada na figura de Lula. Vistos em conjunto, os filmes constroem um mosaico de imagens e depoimentos para compor esta que é uma das personalidades políticas mais representativas da história do país. Surgem as imagens de Lula como um mestre, um pai, líder político e também como um contador de piadas, que gosta de jogar futebol e beber. O filme com o outro candidato nunca foi feito.

Entreatos, de João Moreira Salles, começa com uma passeata que antecede o primeiro turno das eleições, em setembro de 2002. Em uma narração em off, o diretor explica o seu objetivo com o documentário na época em que produziu as filmagens e compara com o resultado após a edição, em um processo semelhante ao que desenvolve e explicita em Santiago (2007). Segundo ele, “mais tarde, o material que mais me interessava dizia respeito às cenas não públicas de Lula”, em discurso que contradiz as escolhas de imagens de abertura do filme, do personagem passeando nas vias públicas, carregando bandeiras e faixas, e socializando com seu eleitorado. Este será, porém, um dos poucos momentos do filme em que Lula aparecerá neste contexto, já que o documentário, que resultou da edição de 240 horas de material bruto, acompanha o último mês da campanha eleitoral e privilegia os bastidores, as conversas particulares fora do foco e dos flashes das câmeras de propaganda política.

Enquanto isso, Peões, de Eduardo Coutinho, faz um duplo movimento. Por um lado, dá espaço para aqueles que batalharam na militância do sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista durante as históricas greves de 1979/80, que mobilizaram 140 mil trabalhadores. Por outro lado, falar de sindicalismo no Brasil é evocar a figura de Lula, por isso, Peões aborda, inevitavelmente, a relação dele com 21 personagens anônimos, especificamente companheiros sindicais que não ascenderam a postos políticos. O filme foi realizado em um mês, por isso Coutinho tinha pouco tempo para selecionar seus entrevistados e optou por fazer um levantamento em rede. Sua equipe convidou alguns metalúrgicos aposentados para reconhecer colegas que participaram das greves de 79/80 em fotos e filmes da época, construindo uma teia de indicações. A técnica utilizada aparece e é emocionante acompanhar os metalúrgicos reconhecendo-se uns aos outros em meio a tantos documentos históricos.

O filme de João Moreira Salles possui um formato próximo ao de Primary (1960), de Robert Drew, sobre a campanha de John Kennedy e Hubert Humphrey para eleições primárias do Partido Democrata, em Winsconsin. O diretor brasileiro optou por uma postura observadora, com a utilização de planos-seqüência, a discrição da equipe de filmagem (que fica praticamente invisível e surge apenas em momentos essenciais), a ausência de trilha sonora e poucas interferências de narração em off. A câmera persegue Lula, que está sempre cercado de assessores, de outras personalidades políticas, da equipe de marketing, de familiares e amigos, caminha com ele nas ruas, se espreme nas multidões e descansa dentro de casa quando ele pára. O diretor e sua equipe pouco interagem com o personagem, isso acontece apenas quando Lula dirige-se diretamente aos cinegrafistas para perguntar, por exemplo, se querem acompanhá-lo na preparação para o debate. Da mesma forma, a gravação contínua permite que o espectador veja como algumas pessoas podem ficar desconfortáveis com a presença da câmera. É o caso de José Dirceu, que questiona a situação durante uma reunião de cúpula do partido, perguntando “Tá gravando? De quem é esse pessoal? Do João? Que João?” e depois desconfia ao afirmar que “eles [a equipe de João] são de confiança, mas não existe confiança absoluta, porque a fita de Lula sobre Pelotas acabou na mão dos nossos inimigos” (em referência à frase de Lula de que Pelotas seria um “pólo exportador de veado”).

Peões está estruturado, como as outras obras de Coutinho, no estilo do “cinema-verdade” (termo traduzido do original kino-pravda, criado por Dziga Vertov), inaugurado com Crônicas de Um Verão (1960), de Jean Rouche e Edgar Morin. Diferente da proposta da “não-intervenção” que inspirou o documentário Entreatos, esta técnica, por influência da metodologia antropológica e sociológica, valoriza a singularidade do encontro do cineasta com o entrevistado. Durante o filme, ficam explícitas as interpelações de Coutinho nas falas dos entrevistados, construindo uma forte interatividade entre a direção e os “atores sociais” retratados. Já nas primeiras cenas, ele bate à porta de Dona Socorro, primeira entrevistada, em Várzea Alegre, Ceará, deixando evidente a dinâmica de seu trabalho. Na edição, Coutinho utilizou também trechos de A Greve (1979), de João batista Andrade; Linha de Montagem (1982), de Renato Tapajós, que está sendo relançado este ano, após 10 anos de restauração, em comemoração aos 30 anos da greve da Scania; e ABC da Greve (1990), de Leon Hirszman.

A influência do “cinema direto” em Entreatos faz com que Lula surja mais humano e menos espetacularizado. Vaidoso como qualquer figura pública, aparece retocando a maquiagem, fazendo a barba, cortando os cabelos, escolhendo a melhor camisa e a gravata que ainda não foi usada em público, reclamando do alfaiate mais caro que arranjaram e do nó mal feito da gravata de José Serra em um dos debates. É espontâneo, faz piadas de um “companheiro xiita do PT”, sobre, os então presidentes, Eduardo Duhalde (Argentina) e George Bush (EUA) e sobre Fernando Henrique Cardoso. Ao mesmo tempo, teme as mudanças que terão sua vida e confessa, em uma declaração, que tem “medo de que a máquina conquiste a gente”.

Baseado na "auto-encenação", Entreatos faz emergir um Lula bem humorado, que se emociona ao lembrar do passado, da infância e de sua mãe. Apesar do documentário captar Lula no cotidiano, isso não quer dizer que ele não esteja representando um papel social. Suas atitudes, portanto, não devem ser naturalizadas, mas encaradas, talvez, como se fossem menos artificiais do que se estivesse sendo pautado e filmado, por exemplo, para uma peça publicitária ou um debate televisivo. “Durante todo o dia, encenamos vários personagens de nós mesmos. As lentes não buscam figuras assépticas. Muitas vezes, a encenação, natural, é muito mais interessante”, comenta o diretor sobre a “autenticidade” de Lula frente às câmeras.

A vitória de Lula, em 2002, repercutiu internacionalmente. Um líder sindical de esquerda chegar ao poder no Brasil, o maior país da América Latina, era motivo de temor para as potências mundiais. O periódico britânico, The Guardian, publicou, na época, que a eleição de Lula "será uma grande vitória simbólica da esquerda, já que esse será o primeiro líder de origem popular a assumir o país em 502 anos de história." O jornal norte-americano, The New York Times, por sua vez, afirmou que o resultado da eleição consolidou uma virada da esquerda, ''além de assustar os mercados internacionais''. Havia, portanto, grande expectativa, tanto no Brasil, quanto no exterior, em torno do governo Lula, afinal era a primeira vez que um ex-metalúrgico, oriundo de setores radicais da esquerda, assumia o poder presidencial.

A liderança sindical de Lula e a identificação da população com ele contribuem para reconhecer o motivo para que João Moreira Salles e Eduardo Coutinho tenham-no escolhido como ponto de partida de seus documentários. Os depoimentos ouvidos por Coutinho demonstram esta identificação dos metalúrgicos com Lula, especialmente em relação à sua trajetória e posição ideológica. Assim como o presidente, muitos deles são nordestinos, atualmente aposentados, com pouca escolaridade, que vieram para o Sudeste quando jovens, na tentativa de melhorar de vida, e militaram no sindicato. Lula veio de Garanhuns, no interior do Pernambuco, para São Paulo, com 12 anos. Trabalhou como engraxate e entregador de roupas em uma lavanderia, antes de ser torneiro mecânico. Em 1966, entrou para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, iniciando sua trajetória política. Nas décadas seguintes, assumiu papel de liderança nas greves de 1979 e 1980, ajudando na fundação do Partido dos Trabalhadores. Na política, sempre conseguiu votação expressiva e foi reeleito para presidente, em 2006, com aproximadamente a mesma porcentagem de votos do pleito anterior.

O histórico político do país contribuiu para a criação de um mito em torno de Lula. Em 1989, depois de 20 anos de ditadura militar, o país escolheria o primeiro presidente civil eleito por voto direto. O resultado foi desastroso e, em menos de dois anos, Collor já havia perdido o mandato para que Itamar Franco, seu vice, assumisse. Desde então, o Brasil foi governado por Fernando Henrique Cardoso, primeiro presidente civil eleito pelo voto direto a conseguir terminar o mandato, o que não ocorria desde Juscelino Kubitschek, em 1956. No contexto em que foi eleito, Lula representava, portanto, a esperança de uma grande mudança no cenário político.

Antes da primeira eleição em que saiu vitorioso, Lula era a grande aposta da nação para uma virada de mesa e o PT, depois de mais de 20 anos de existência, estaria, pela primeira vez, na presidência da república. Lula defendia um discurso radical, de rompimento com as grandes instituições financeiras, abertamente a favor da reforma agrária e da ampliação das políticas sociais. Já para a campanha de 2002, adotou um novo visual e discurso mais moderado, se tornando uma figura palatável para todas as classes sociais. Em Entreatos, esta consciência é evidente, já que ele próprio comenta que “hoje a única figura de dimensão nacional sou eu”. Em outro momento do filme, um motoboy encosta ao lado do carro de Lula e diz que ele é a “última esperança” para o país. Porém, ao se eleger, Lula não correspondeu às expectativas do povo.

Apesar de terem um tom esperançoso, os filmes Entreatos e Peões ecoam a utopia do Lula combatente em contraposição ao Lula do Palácio do Planalto, que abriu mão de suas ideologias para chegar e permanecer no poder. Além disso, depois da crise, em 2005, na qual diversos dirigentes do partido e participantes das campanhas eleitorais foram acusados de práticas ilícitas, o PT saiu desmoralizado. Houve um grande racha no partido, que se afastou de discursos mais radicais, e dividiu militantes que foram, majoritariamente, para o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) e para o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), criados respectivamente, em 1994 e 2004, por dissidentes do PT. Em análise mais ampla, o resultado foi também a efetiva desconstrução do binômio esquerda-direita na política brasileira, com a descrença no único partido que parecia ser uma oposição às políticas neoliberais dos governos anteriores. Mas Lula permaneceu bem visto, como se sua figura tivesse se descolado do partido. Como afirma Tê, uma das entrevistadas de Peões, era Lula quem chegava à presidência, e não o PT.

Hoje, em 2008, às vésperas da eleição para prefeito e vereador, a sensação de desencantamento volta com força. Dois anos após a reeleição e do governo Lula ter enfrentado diversas crises, compreende-se que não há mudanças estruturais no país. E mesmo assim o governo Lula (ou seria ele próprio?) foi avaliado como ótimo, ou bom, por 64% da população, segundo pesquisa divulgada pelo Datafolha (31/08). Na pesquisa anterior, ele já havia ultrapassado a aprovação de todos os presidentes eleitos após a redemocratização do país, com 53 pontos percentuais, e agora bate o seu próprio recorde. Além disso, sua história será tema de Lula - O Filho do Brasil, nova ficção de Fábio Barreto, que conta a vida de Lula desde seu nascimento até o inicio da sua liderança no sindicato, com o slogan "você conhece o homem. Mas não conhece a sua história".

A mitificação em torno de Lula representa o desejo por um futuro diferente. Ao mesmo tempo, porém, e de forma ainda mais incisiva, representa um desencantamento, na medida em que esse mito, por si só, é fruto do descrédito nos partidos, nos candidatos ao governo, na corrupção, e na política de modo geral. Esta melancolia perpassa os filmes nacionais da última década, nos quais praticamente inexistem propostas de soluções para os problemas sociais. Entreatos e Peões, vistos do ponto de vista de um espectador de 2008, refletem esta mesma melancolia, de uma estrela que morre, um sonho que se apaga e um país que permanece igual sem a perspectiva de um futuro melhor.

Por Camila Fink


Outubro de 2008