Ensaios

Solução individual dos problemas sociais marca produções brasileiras

Terra Estrangeira (1996), Walter Salles e Daniela Thomas
Cidade de Deus (2002), Fernando Meirelles

O ímpeto de deixar o lugar em que se vive e ir em busca de um futuro melhor é temática recorrente em produções nacionais contemporâneas, como em Um Céu de Estrelas (1996), Lavoura Arcaica (2001), O Céu de Suely (2006), Cidade de Deus (2002), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), além de estar muito presente na obra de Walter Salles, como se observa em Terra Estrangeira (1996), Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado (2001) e Diários de Motocicleta (2004). Rompe-se com os valores familiares, com a terra natal ou com a comunidade em que se vive, para ir em busca da própria identidade ou de novas perspectivas. É fato que o deslocamento não é um elemento exclusivo da cinematografia nacional, porém, nela esta questão adquire contornos específicos que serão analisados neste ensaio por meio de dois filmes que marcaram o cinema nacional recente: Terra Estrangeira e Cidade de Deus.

O segundo longa de Walter Salles, em co-direção com Daniela Thomas, foi realizado em um período politicamente crítico do Brasil. Com o fim de 26 anos de ditadura militar, eram grandes as expectativas com o governo democrático. Porém, o entusiasmo pela gestão do primeiro presidente eleito pelo voto direto e popular depois do golpe foi rapidamente substituído por desilusão devido às políticas de Fernando Collor de Mello. No plano econômico, elas foram responsáveis, entre outras medidas, pelo confisco da caderneta de poupança dos brasileiros e, para a classe cinematográfica, significaram a paralisação quase total da produção de filmes causada pela extinção da Embrafilme. Segundo Walter Salles, em entrevista publicada no livro Cinco Mais Cinco, “Terra é um filme marcado pelo momento em que estávamos vivendo, pelos anos de silêncio que o cinema brasileiro sofreu no início dos anos 90 – e pelo desejo de resistir a isso”.

O sentimento de desilusão de uma juventude sem perspectivas, sem utopias políticas, como a da revolução socialista com que contava o Cinema Novo, foi transposto para as telas pelo diretor. Durante o governo Collor, muitos brasileiros, inclusive cineastas, deixaram o país, o que é mostrado no longa por meio dos personagens Paco (Fernando Alves Pinto), Alex (Fernanda Torres) e Miguel (Alexandre Borges).

Quando Cidade de Deus foi lançado, em 2002, a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual, apesar de suas limitações, já garantiam, novamente, uma produção constante de longas-metragens no Brasil. A adaptação do livro homônimo de Paulo Lins levou para o cinema mais de três milhões de espectadores, sendo a quarta maior bilheteria da nova safra do cinema brasileiro. Para alguns críticos, o filme marca o encerramento da “retomada” da produção nacional. Se no contexto de lançamento de Cidade de Deus, o temor pelo futuro do cinema nacional já havia sido, em certa medida, superado, e o impeachment do Collor já fazia parte do passado, continuamos com os problemas de um país subdesenvolvido. A falta de políticas sociais e o acirramento da desigualdade no país fizeram com que as favelas aumentassem, assim como a criminalidade e o tráfico de drogas. O governo, por sua vez, vem adotando a violência policial como forma de manter os marginalizados em seus lugares, em resposta as demandas da classe média acuada.

Estas questões chamaram a atenção de cineastas que fizeram vários filmes abordando o cotidiano nos morros denominados pela mídia posteriormente de “filmes-favela”, como é o caso de Cidade de Deus. O descaso do governo com os menos favorecidos é apontado pelo narrador e protagonista do filme de Fernando Meirelles, Buscapé (Alexandre Rodrigues), em uma de suas falas em off em que ele comenta sobre o aumento de moradores na favela que dá nome ao longa. Segundo ele, o governo mandava famílias carentes para a Cidade de Deus, apesar dela não ter condições de abrigar mais moradores, pela falta de luz, asfalto e ônibus. “Mas para o governo dos ricos não importava o nosso problema. Como eu disse, a Cidade de Deus fica muito longe do cartão postal do Rio de Janeiro”, critica o protagonista.

O protagonista de Terra Estrangeira, Paco, não tem a consciência de Buscapé, até por que o ponto de vista do personagem de Cidade de Deus é privilegiado, já que ele narra a história sabendo o seu desfecho. Paco é um estudante de classe média paulista e aspirante a ator que vê sua vida desmoronar com a morte da mãe Manuela (Laura Cardoso). Ela tem um ataque cardíaco ao saber que sua poupança havia sido confiscada, por causa do plano Collor. Perdido, o jovem acaba se envolvendo com Igor (Luis Melo), um contrabandista, e vai para Portugal com o objetivo de negociar uma encomenda valiosa. Em Lisboa, ao procurar Miguel, o homem para quem ele deveria entregar a encomenda, conhece Alex, garçonete brasileira e ex-namorada de Miguel, com quem Paco viria a ter um relacionamento.

Alex e Paco se identificam, em pouco tempo de convívio, por sofrerem da mesma carência: são personagens sem lugar. Sofrem preconceito por serem brasileiros em Portugal, porém não cogitam voltarem para o próprio país, pois este se transformou em uma terra estrangeira para eles. A opção por uma fotografia em preto e branco reforça o desencanto dos personagens naquele contexto. Em uma seqüência do filme, Alex diz temer o futuro de Miguel devido ao envolvimento do namorado com negócios ilícitos e ele sugere que eles mudem de país. Neste momento, ela diz que “não depende do lugar, quanto mais o tempo passa, mais eu me sinto estrangeira”. Em outro diálogo, agora com Paco, Alex fala que gostaria de ir para a casa. O jovem pergunta onde é a casa dela. Ela responde: “Boa pergunta”. Esses diálogos exemplificam o sentimento de exílio, transmitido no longa principalmente por Alex, a personagem mais consciente da situação em que se encontram os brasileiros que optaram viver em outros países.

A morte da mãe de Paco deixa o jovem tão desamparado que ele não se dá conta de sua trajetória em Portugal. Ele não tem projeto algum e apenas reage aos acontecimentos. Quando o protagonista está sendo perseguido pelo roubo do violino que estava sob sua responsabilidade, resolve fugir com Alex para San Sebastian, terra natal de sua mãe. Este novo deslocamento significa para o protagonista realizar o grande sonho dela, mas também ir em busca de suas origens, já que ele se encontra completamente desnorteado. Porém, seu projeto é abortado no momento em que ele leva um tiro. Esta procura do personagem também pode ser transposta para os realizadores do longa que se questionavam sobre o futuro do cinema no Brasil.

A escolha de Portugal, antiga metrópole do Brasil, como refúgio não é aleatória. Esse movimento simboliza o retorno às origens, uma tentativa de resgate da identidade do país, que se encontrava em crise. Há uma dupla procura pela identidade, tanto dos personagens, como do Brasil. Em uma passagem do filme, Alex e Paco, ao fazerem uma parada no meio da viagem a San Sebastian, se deparam com um navio naufragado em uma praia. A impactante imagem, que foi escolhida para a divulgação do filme, serve como metáfora do Brasil naquele momento, um país estagnado.

Walter Salles volta a abordar a questão da identidade em seus filmes posteriores. Em Central do Brasil (1998), a viagem que Dora (Fernanda Montenegro) e Josué (Vinícius de Oliveira) fazem do Rio de Janeiro para o Nordeste em busca do pai do menino revela, novamente, a procura pela identidade do país, mas desta vez o caminho é outro, e se dá por meio da incursão no Brasil profundo. Ao mesmo tempo, essa viagem promove uma mudança nos personagens, fazendo com que Dora resgate sua sensibilidade e Josué encontre seus irmãos, recuperando sua identidade. Este movimento se repete também em Diários de Motocicleta (2004).

É interessante notar que os títulos dos filmes delimitam o tema a ser tratado por meio de um recorte espacial, que em Terra Estrangeira é o país e, em Cidade de Deus, a favela, que funciona como um microcosmo do Brasil. O filme parte de uma favela do Rio de Janeiro para descrever a dinâmica do tráfico de drogas e criminalidade. Fernando Meirelles escolheu Buscapé, personagem secundário do livro de Paulo Lins, para ser o eixo da narrativa do longa. O jovem morador da favela não tem envolvimento com o crime, mas vive em constante apreensão por medo de ser morto ou sofrer alguma violência do poderoso traficante, Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora), que, quando criança, matou o irmão de Buscapé.

O protagonista de Cidade de Deus é o estereótipo do jovem humilde de bom caráter, trabalhador, que vive de acordo com as regras e não se corrompe. Desde criança, ele trabalhava vendendo peixes para o pai, depois, já adolescente, era fiscal em um supermercado, no qual ganhava pouco e foi demitido injustamente. Indignado, Buscapé sai com seu amigo com a intenção de assaltar alguém. Porém, ele fica com dó de suas potenciais vítimas e desiste da idéia. Esta passagem contribui para a caracterização do personagem, como uma forma de demonstrar que ele não tinha índole para o crime. É por meio de seu último trabalho, como entregador de jornais, que ele consegue o tão sonhado emprego de fotógrafo. No plano afetivo, ele também não tem sucesso em suas tentativas de se relacionar com Angélica, (Alice Braga), pois quem leva a melhor é o braço direito de Zé Pequeno, o popular Bene (Phellipe Haagensen).

Depois de uma longa trajetória de resignação, Buscapé é recompensado por sua honestidade e tem seu talento reconhecido com o emprego de fotógrafo no jornal. O prestígio profissional é concomitante à realização de outro desejo do personagem, o de perder a virgindade. Em contrapartida, o cruel traficante que tinha status e poder na favela, Zé Pequeno, é morto no final do filme. O que se vê é a repetição do clássico embate entre o vilão e o mocinho, em que o último sai vitorioso, como de costume.

Porém, analisar o desfecho do filme apenas por este viés seria reduzi-lo. Apesar de Buscapé continuar morando na Cidade de Deus, o emprego no jornal significa sua ascensão social e o insere na lógica capitalista do self-made man - aquele que veio das camadas sociais menos favorecidas e com seu próprio esforço triunfou. Esta mudança de status é reforçada pela fala que encerra o longa, em que ele diz: “Ninguém mais me chama de Buscapé, agora sou Wilson Rodrigues, fotógrafo”. Esta frase remete à declaração “Dadinho o caralho, meu nome é Zé Pequeno”, quando ele se tornou o homem mais poderoso da Cidade de Deus. Em conjunto, as falas reforçam o desejo de ascensão social presente naquele universo.

É emblemático que, em ambos os filmes, diante de problemas políticos e sociais, os protagonistas optem pela solução individual dos conflitos. Buscapé se desloca para o espaço da classe média por meio do seu trabalho como fotógrafo, sem romper com a favela, nem alterá-la. Ele vive de sua degradação, pois o que fotografa é a própria Cidade de Deus. Já Paco opta pelo escapismo e rompimento com o país. Não há nenhuma tentativa de articulação política coletiva que vise combater a falta de oportunidades na favela em Cidade de Deus ou os absurdos cometidos pelo governo de Fernando Collor de Mello, em Terra Estrangeira. É a lei do “cada um por si” que rege os personagens. O que é coerente com o contexto de extremo descrédito político em que vivem os protagonistas. Mas, mais do que isso, a postura de Buscapé e Paco reflete o individualismo em que estamos mergulhados nas sociedades ocidentais contemporâneas.

Por Cyntia Calhado


Outubro de 2008