Ponto de vista

A frágil cultura cinematográfica brasileira

Entrevista com Inácio Araújo

Conseguimos finalmente marcar a entrevista. Naquela terça-feira já estávamos menos nervosas, até colocarmos o pé na rua e, quase imediatamente, começar a cair uma das mais fortes chuvas do ano. Chuva e pés molhados. Subimos. O ônibus cheio não impediu que continuássemos discutindo e conversando os últimos detalhes. Faltava ar e as respirações apagavam a visibilidade das janelas. Era noite, mas era como se aquela estivesse mais escura. Descemos. Chuva e calças molhadas. Está longe? Não, era pouco mais para dentro de Higienópolis. Vai ser impossível, pensávamos. A cobertura do edifício bancário nos serviu de abrigo. Atraso, vamos chegar encharcadas. Fome aqui, um cigarro lá. Deve ser castigo divino. Quem mandou querer estudar cinema brasileiro? E a água caía. Nova tentativa, continuamos a saga ultrapassando os obstáculos aquáticos. Até que tocamos a campainha e dentro de alguns segundos estávamos, afinal, frente a frente com Inácio Araújo, referência de leitura diária na crítica de cinema da Folha de S. Paulo, onde atua desde 1983, “quando o nosso cinema começou a entrar em crise”, diria ele mais tarde.

Inácio começou a sua carreira jornalística como colaborador de jornais e, no cinema, nos anos 70, como assistente de direção do filme A Herança, de Ozualdo Candeias. Depois, foi assistente de montagem em longas-metragens e em peças publicitárias. Nos anos 80 escreveu roteiros de diversos filmes como Amor, Palavra Prostituta (1982) e Filme Demência (1987), ambos de Carlos Reichenbach, com quem havia trabalhado como montador. “Essa era uma época em que eu não tinha muito trabalho”. Dirigiu e montou Uma Aula de Sanfona, episódio de As Safadas (1982) e publicou livros sobre cinema, como Hitchcock - O Mestre do Medo e Cinema - O Mundo em Movimento, além dos romances Casa de Meninas e Uma Chance na Vida. A entrevista foi no seu escritório, no mesmo local onde dá seu curso de história e linguagem do cinema. Ainda molhadas, engolíamos todo o ambiente com o olhar. Tantos filmes, tantos livros e revistas. Ainda teríamos uma filmoteca daquelas. Tudo começou, gravador ligado. Nervosismo? Não sei do que se trata, acho que escorreu pelas nossas pernas e foi levado com a água da chuva.

Histórico do Cinema Brasileiro

Eu tenho a impressão de que se compararmos as gerações passadas, que produziam no Cinema Novo e no Cinema Marginal, com a de hoje temos algo bem diferente. Os cineastas mais novos tendem a trabalhar com outro referencial. Em geral, o cinema atual é muito ingênuo, muito apoiado nos roteiros e na fotografia. É uma concepção que foi influenciada pelo cinema norte-americano recente e pela televisão. Ao mesmo tempo, é um cinema preocupado com a rejeição do seu objeto. Isto começou com a Embrafilme e, depois disso, surge um desejo de atingir um público mais amplo outra vez. Antes isso havia acontecido nos anos 70, quando o cinema brasileiro tinha contato com o público, mas isso se perdeu em seguida. Existe uma necessidade do cinema deixar de ser rejeitado, em uma tentativa que não é muito bem sucedida, somente em casos isolados, de um ou dois filmes por ano que batem dois milhões de espectadores, como o Dois Filhos de Francisco. Na época da Vera Cruz os filmes eram feitos em estúdio. Já no Cinema Novo, havia uma necessidade de mostrar um país que não era visto. Hoje há uma influência bem marcada das novelas, tanto que os filmes de sucesso são, em geral, da Rede Globo. Por outro lado, há um realismo mais tradicional no cinema brasileiro, mas isso é uma toada do cinema mundial, apesar de termos nossas particularidades.

Produção Cinematográfica Contemporânea

Há uma deficiência de cultura cinematográfica dos diretores. O cinema desta geração no Brasil não é muito cultivado, pouco se conhece a história do cinema. Além disso, a classe média não se vê representada, como ocorria nos anos 70. A sociedade e principalmente os jovens da classe média consideravam que aquele cinema representava uma oposição ao regime político. Nos anos 80, com o enfraquecimento da ditadura, o cinema brasileiro começou a ruir e a perder importância representativa. Por isso, os momentos de maior relevância do cinema brasileiro são extra-cinematográficos [referindo-se aos fatores que dependem do contexto histórico]. O cinema também é uma coisa de sorte. Quando o Walter Salles lançou o Central do Brasil, era o momento logo após o início do Plano Real, havia uma crença de regeneração do país. Por isso, o filme fez tanto sucesso e com filmes seguintes não ocorreu a mesma coisa. O Carlota Joaquina também fez sucesso na época, pois as pessoas partilhavam a descrença no país. Hoje ninguém dá tanta importância a este filme, por que estamos em outro contexto.

Cinema Comercial

Enquanto isso, os filmes de apelo às classes mais baixas sempre tiveram um público fiel, como nas chanchadas, nos filmes de Vicente Celestino, Mazzaropi, nas pornochanchadas, no Bandido da Luz Vermelha. Quando o cinema deixou de ser uma arte popular, nos anos 80, este público desapareceu. Há um problema de representação. A sociedade não se vê representada na figura brasileira. Nos anos 20 e 30, não havia negros no cinema. Agora, há uma exploração do estado paranóico em que está mergulhada a classe média do Brasil, o que resulta nestes filmes sobre as favelas. Eles coisificam o morador da favela, como se ele fosse um ser diferente, o que é um grande problema. Filmes como Meu Nome Não é Johnny, Tropa de Elite e Cidade de Deus apontam todo esse desequilíbrio social.

Público

Não temos um público que acredite no nosso cinema. Em geral, o problema não está nos filmes, mas na relação das pessoas com eles. É um problema de crença. Além disso, não se respeita o cinema brasileiro. As pessoas encontram defeitos e problemas nos filmes que não existem. Elas querem ver na tela a imagem que elas mesmas criaram e consideram que esta é a mais correta e próxima da realidade. Com o filme brasileiro acontece algo engraçado. Todo mundo tem palpite para dar, porque acha que conhece tudo sobre o país. No resto do mundo, os diretores são respeitados como intelectuais que sabem o que fazem.

Produção, Distribuição e Exibição

Eu acho que o cinema hoje é muito mais difícil do que em outros tempos. Ele já foi uma arte muito mais aberta às inovações do que é hoje, quando se transformou em uma arte muito mais cara. E é um aparato que não leva a parte alguma. Se o filme não possui som estéreo quase nenhuma sala vai exibir. Porém isso não faz diferença nenhuma para os filmes brasileiros, que são muito mais intimistas. As equipes de filmagem e produção são desnecessariamente grandes. Essa idéia de que a qualidade de um filme depende do tamanho da equipe é conversa mole. Gasta-se muito dinheiro à toa. Além disso, os esquemas de distribuição são hoje arrasadores, ou você tem uma boa distribuidora ou é literalmente esmagado, em todos os aspectos, começando no lançamento. O principal problema é que falta uma ação governamental ou não, voltada para a distribuição dos filmes. É preciso ter iniciativas de marketing, pensar a quem o filme está dirigido e como fazer para alcançar este público, mas isso é caro. Nos Estados Unidos, o orçamento para lançar um filme como O Homem Aranha é muito grande, por isso, quando você assiste, tem a impressão de que já sabe tudo sobre ele, de tanto que circulou na televisão, nas revistas, jornais, internet.

Política Audiovisual

Eu acho que a legislação, não só a cinematográfica, é ruim. Na lei de incentivo, por exemplo, a instituição desconta um imposto que precisa pagar em seu próprio benefício. Isso não existe, não pode existir. Além disso, não vejo razão para incentivar filmes de grandes redes de televisão. Acho que antes de mais nada é preciso tomar uma decisão. Afinal, qual é o interesse do nosso cinema? Se for fazer público, então é necessário orientar toda a política cultural para isso e assumir a responsabilidade. Na minha opinião, fazer cinema com este objetivo não adianta nada, pois estaríamos fazendo uma cópia dos filmes norte-americanos, que são evidentemente melhores neste quesito.

Festivais de Cinema

Hoje em dia vencer festivais não significa muito, beneficia a própria carreira do diretor, que passa a ser convidado para gravar lá fora. Para a nossa cinematografia não tem vantagem nenhuma, já que não há um movimento, como no Cinema Novo. A maior importância dos festivais nacionais hoje, no Brasil, é a de exibir os filmes em diversas cidades, caso contrário, eles seriam vistos apenas nas capitais.

O Melhor da Produção

Dos diretores mais antigos e que ainda produzem os melhores filmes são Eduardo Coutinho, Andrea Tonacci, Paulo César Sarraceni, Carlos Reichenbach, Walter Lima Júnior, Júlio Bressane. Da nova geração, acho que o Walter Salles se destaca, a Sandra Kogut, apesar de ter feito poucos filmes. Os pernambucanos também são muito bons, o Lírio Ferreira é um deles. Acho que o Beto Brant tem um trabalho diferenciado também e a Tata Amaral, que ainda tem uma carreira um pouco irregular, mas tem filmes muito interessantes.

Agosto de 2008