Ensaios

O novo velho sertão brasileiro

Abril Despedaçado (2001), Walter Salles
Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), Marcelo Gomes

Um traço comum em diversas obras do cinema nacional contemporâneo são as temáticas relacionadas à vida urbana e sobre a conflituosa relação asfalto-morro. Fora do eixo Rio-São Paulo, apenas uma outra linha, a do chamado “Brasil profundo”, é explorada com mais ênfase. Este assunto não é uma especificidade do cinema brasileiro dos últimos anos, pois já era foco de análise durante o Cinema Novo, embora tenham sido problematizados desde O Cangaceiro (1953), por exemplo. Observa-se agora uma ressignificação da realidade do sertão nordestino, tal como pode ser verificado em dois filmes que discutem este mesmo ambiente a partir de novas leituras. Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles, é a terceira adaptação para o cinema do romance homônimo de Ismail Kadaré e transporta para o Brasil uma história de origem albanesa, sobre duas famílias rivais, regidas pela lógica da vingança. Já Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), baseado na vida do tio-avô do estreante cineasta Marcelo Gomes, é sobre a amizade de um sertanejo e um alemão imigrado.

Menino (Everaldo Pontes) é o personagem-narrador de Abril Despedaçado. É o caçula da família Breve, estruturada sob forte poder patriarcal, e sobrevive do plantio de cana-de-açúcar e da venda de rapadura. Mora em Riacho das Almas com seu pai, mãe e Tonho (Rodrigo Santoro), o único irmão que ainda sobrevive ao conflito ditado pelo código de honra, no qual matar significa morrer em nome dos antepassados. O dia-a-dia se repete no canavial até que é chegada a vez de Tonho cumprir seu destino e vingar a morte do irmão mais velho, assassinado pela família Ferreira, inimiga, repetindo assim os passos de seu pai, avô e bisavô. Não se sabe exatamente o início da rixa, basta compreender que há antigos conflitos de terra na região. Sem alternativas, Tonho cumpre a sentença e aguarda. Fica à espera do fim da trégua, marcada pelas fases da lua, ou pelo desbotamento do sangue na camisa da vítima.

O filme é narrado cronologicamente, embora exista um corte temporal no início, quando a voz em off de Menino aparece tentando rememorar uma história - que, na verdade, é a da sua própria vida. Isso dá margem para a mudança do foco narrativo, a câmera deixa de ser subjetiva e de acompanhar o ponto de vista deste personagem “sem nome”. A mesma seqüência é retomada no final, quando a narração volta a ser subjetiva. Esta é apenas uma dentre outras características, como o nome do personagem principal, que aproximam a obra de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, livro que, assim como o filme, possui uma estrutura circular. A vida de todos os personagens também segue este padrão, tal como constata Menino, “a gente é que nem os boi. Roda, roda e nunca sai do lugar”. Esta referência à bolandeira, máquina de moer cana movida à tração animal, enfatiza o círculo vicioso de vingança que rege as famílias, o dia-a-dia em Rio das Almas, e o ciclo gerado com a seqüência de morte, trégua e morte. A repetição do movimento circular da bolandeira ainda faz referência ao relógio e, portanto, à passagem do tempo.

Cinema, Aspirinas e Urubus se passa no interior do Brasil, em meados de 1940, aproximadamente 30 anos depois da ficção adaptada por Walter Salles. Neste filme em estilo road-movie, Johann (Peter Ketnath), um alemão imigrado ilegalmente, ganha a vida viajando de cidade em cidade, promovendo sessões de cinema com propagandas para vender aspirinas, “a solução para todos os males”. No caminho conhece Ranulpho (João Miguel), jovem que quer buscar oportunidades melhores de vida no sul do Brasil. No dia-a-dia, cria-se entre os dois um forte laço de amizade e carinho, a ponto de um deles arriscar a própria vida para salvar o outro. O contexto do filme aparece sutilmente pela locução do rádio da caminhonete de Johann, quase sempre ligado. É possível reconhecer a vinheta do programa Repórter Esso, que foi ao ar durante o governo de Getúlio Vargas e informava, dentre outras coisas, notícias sobre a Segunda Guerra Mundial. Foi nesta época que Johann – assim como todos os outros imigrantes japoneses e alemães – começou a ser perseguido pelo estado getulista, após a declaração de estado de guerra do Brasil com o Eixo.

Outra característica explorada pelas duas obras é a presença do “estrangeiro”– entendido como “o outro”, “o desconhecido”–, representada por Clara e Salustiano, no filme de Walter Salles, e por Johann, na obra de Marcelo Gomes, personagens que, cada um a seu modo, subvertem a ordem da realidade.

Em Abril Despedaçado, esta mudança é metaforizada com uma brusca alteração no comportamento dos bois. De tanto repetirem o movimento de andar em círculos, já faziam isso sozinhos. Mas um dia, durante a moenda da cana, eles simplesmente param, possivelmente desgastados pelo trabalho. A chegada de Clara (Flávia Marco Antônio) e Salustiano (Luiz Carlos Vasconcelos), dois artistas de circo mambembe, em Rio das Almas, rompe com o cotidiano do vilarejo. Menino ajuda os artistas perdidos a reencontrar o caminho e, em agradecimento, Clara o presenteia com um livro. A partir deste acontecimento, a história toma outro rumo. Menino, que ainda não sabia ler, se apega ao livro, utilizando as ilustrações como ponto de partida para recriar a história, cada vez de uma maneira, conforme a sua imaginação. Além disso, contrariando tradicionais regras da casa, Tonho leva seu irmão para ver o circo. Lá conhece Clara e se apaixona. O circo, portanto, não trouxe apenas o fogo, os truques, a diversão, o entretenimento, mas a literatura e o amor, como sinônimos, ou formas, de libertação. Esta noção de liberdade é enfatizada por diversos elementos durante o filme, com o balanço no qual os dois irmãos brincam. Ou no trapézio em que Clara se pendura, referência à equilibrista de Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, um dos diretores mais influentes na cinematografia de Walter Salles. Outro elemento que demonstra este rompimento da história se dá com o batismo de Menino por Salustiano, com o nome de Pacu.

Em Cinemas, Aspirinas e Urubus, assim como em Abril Despedaçado, o personagem que representa o “estrangeiro” traz consigo a novidade. Neste sentido, Johann pode ser identificado com o progresso, andando com sua caminhonete em uma região e época em que o automóvel não era comum. Ele também rompe as fronteiras com seu rádio, que toca músicas nacionais e dá notícias da Europa. Não suficiente, ele leva nas suas viagens o cinema, encantando pessoas como Ranulpho, que se emocionam com a projeção do Corcovado nas suas mãos. Além do espetáculo cinematográfico, há toda a inovação técnica na área de transporte, cultura e medicina, representada pelos elementos do título do longa-metragem.

Estes filmes, assim como outros da cinematografia recente como Corisco e Dadá (1996), Crede-Mi (1997) e Central do Brasil (1998), dialogam com as produções cinemanovistas, na medida em que ressignificaram o sertão. O primeiro filme das últimas décadas do cinema brasileiro a resgatar a temática do cangaço foi Baile Perfumado (1997). Os cineastas Lírio Ferreira e Paulo Caldas foram influenciados por elementos da cultura pop para contar a história de Lampião, a partir das imagens produzidas, na época, pelo mascate Benjamim Abrahão. O resultado é um filme que combina a natureza documental, das imagens de Benjamim, com a ficcional, da reconstituição dos fatos da época. O objetivo destes diretores pernambucanos era fazer com o cinema o que o movimento mague beat fez com a música, remodelando elementos. Isto é feito, por exemplo, ao colocar água em abundância na região mais seca do país, executar tomadas aéreas em planos-seqüência.

Diferente das produções do Cinema Novo, os filmes aqui analisados não se propõem a discutir assuntos de cunho sócio-político de maneira engajada, tal como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis. Esta mudança ideológica reflete-se, na década de 90 e na seguinte, em novas estéticas para falar do sertão.

O longa-metragem de Marcelo Gomes foi filmado em 16 mm, sem o uso de tripé, com não-atores como figurantes, aproximando-se de diversas características utilizadas por cineastas como Glauber Rocha, Joaquim Pedro Andrade, Leon Hirzman e outros. Além disso, o filme tem a luz estourada - no começo e no final -; cores em tonalidade sépia, efeito conseguido com o recurso de “diminuição do espectro cromático”; não há locuções em off, ou trilha sonora contínua, ela existe apenas quando o rádio faz parte do espaço diegético da cena, por exemplo, quando os personagens estão dentro do carro, com o rádio ligado.

Já o filme de Walter Salles também utiliza não-atores representando Menino/Pacu, personagem de mais fôlego, e Clara. O diretor se afasta da proposta da “câmera na mão” e busca o enquadramento tradicional na fotografia produzida por Walter Carvalho, na qual não há tons desbotados e as cores são naturalmente contrastadas. A trilha sonora, como em outros filmes de Walter Salles, é um recurso que intensifica o estilo melodramático adotado pelo diretor, totalmente diferente da proposta neo-realista incorporada pelo Cinema Novo. Há também uma alusão à célebre frase de que o sertão viraria mar, pois o personagem Tonho, depois de descobrir o fim de Pacu, abandona sua família e vai embora caminhando, até encontrar o litoral, lugar preferido de seu irmão mais novo, apesar de não conhecer a praia. A cena simboliza o rompimento com a realidade da vendeta e, mais uma vez, representa a liberdade. Já em Cinemas, Aspirinas e Urubus, ocorre o inverso, depois da declaração do governo, Johann se refugia ainda mais no interior do país e vai para a Amazônia.

Os finais dos filmes apontam para uma das discussões caras à cinematografia nacional recente, que é a questão do escapismo como solução para os problemas individuais. Assim como ocorre em Terra Estrangeira (1995) e Cidade de Deus (2002), Ranulpho e Johann se deslocam dos contextos em que se encontram para fugir da guerra e da perseguição política, da seca e da fome. O alemão sai de sua terra natal em busca de uma espécie de auto-exílio. O pacifista Johann vai para um país estrangeiro e incorpora a forma de viver brasileira, circulando pelas estradas, convivendo com sertanejos, embrenhando-se cada vez mais pelo centro do país. Ranulpho, por sua vez, trilha o mesmo caminho, mas em direção oposta. Também ele deseja uma nova vida, mas quer fazê-la longe do sertão, se afastando cada vez mais do coração do Brasil. De certa forma, é como se ambos buscassem (re) construir suas identidades na estrada.

Em oposição, o final de Abril Despedaçado aponta para outro tipo de resolução dos problemas que não a fuga individual. Na noite que marca o fim da trégua dada a Tonho, a tempestade antecipa a tragédia que estaria por vir. Plasticamente, isso ocorre pelo contraste dos tons amarelos e laranjas do dia-a-dia do sertão seco com as sombras e cores azuladas da noite chuvosa. Depois da trégua, marcada por momentos lúdicos, em uma espécie de faz-de-conta, consolida-se a relação de amor entre Tonho e Clara, enquanto Menino decide se passar por seu irmão, entregando-se ao sacrifício em nome do fim do conflito entre as famílias. Diferente de Paco, de Terra Estrangeira, Buscapé, de Cidade de Deus, Ranulpho e Johann, ele precisou transformar sua realidade, sem dela se distanciar. É interessante notar que este papel consciente e questionador da tradição é de uma criança, o que lembra a maturidade antecipada de Miguilim, em “Campo Geral”, de Guimarães Rosa.

Cinemas, Aspirinas e Urubus e Abril Despedaçado, portanto, colocam em discussão o sertão, já muito explorado pelas obras cinemanovistas, que surge agora em oposição e complemento ao que era antes produzido. Este pedaço do Brasil não é mais visto com foco engajado, de onde começaria a revolução. Mas como espaço nos quais são evidenciados principalmente conflitos individuais, mesmo tratando-se de temas universais como a morte, a guerra (seja ela mundial ou regional), a miséria e a fome. Tudo isso é apresentado de uma forma única, que contribui para as temáticas discutidas sem desvalorizá-las.

Por Camila Fink


Novembro de 2008