Ensaios

Estética e temática se aliam em busca do grande público

Carandiru (2003), Hector Babenco
Tropa de Elite (2007), José Padilha

Com um público de cerca de 4,5 milhões pessoas, Carandiru é o segundo filme brasileiro mais visto nos últimos 12 anos, ficando atrás somente de Dois Filhos de Francisco que ostenta a marca de mais de 5 milhões de espectadores. O sucesso da superprodução fez com que a Rede Globo resolvesse produzir a série de TV Carandiru, Outras Histórias. Outro fenômeno é Tropa de Elite, que mesmo antes de seu lançamento, já era um recordista de público devido aos DVDs piratas que circularam no país. Uma pesquisa realizada pelo Ibope, em outubro do ano passado, indica que 11 milhões de brasileiros assistiram ao longa por meio destas cópias. Após a estréia, levou, ainda, mais de 2 milhões de brasileiros ao cinema, ficando em décimo lugar na lista dos filmes com maior bilheteria do cinema nacional contemporâneo. Dividiu opiniões entre os críticos, chegou a ser comparado ao Rambo pela revista americana Variety e acusado de ser fascista por setores da imprensa brasileira. Apesar das críticas, foi coroado pelo júri presidido por Constantin Costa-Gavras, ganhando o Festival de Berlim no ano passado.

É o sonho da maioria dos cineastas ver seu filme alcançar recordes de bilheteria. Mas, é impossível prever seu sucesso, pois ele depende de fatores que escapam ao controle do diretor. Um longa pode ser realizado a partir de certas fórmulas consagradas do cinema comercial, ter um grande elenco e abordar temas de prestígio com o objetivo de conseguir a aceitação do público e, mesmo assim, ser um fracasso, ou o contrário. Porém, pode-se tentar levantar hipóteses que justifiquem o interesse por estes filmes.

O massacre do Carandiru ficou marcado como um episódio de abuso de poder, uso descabido de violência policial, violação dos direitos humanos e impunidade. Teve repercussão internacional e ampla cobertura midiática. O filme, ao retratar este fato da história nacional recente, já tinha como aliado, portanto, o impacto deste acontecimento na memória de milhões de brasileiros. O longa é uma adaptação do best-seller de Dráuzio Varella, Estação Carandiru, o que também contribuiu para levar mais espectadores às salas de cinema. Além destes fatores, a superprodução contou com a publicidade televisiva e em outdoors garantida pela Globo em seu lançamento. Assim como o filme sobre o presídio, Tropa de Elite ganhou enorme destaque na mídia por causa do roubo de uma de suas cópias que serviu como matriz para os DVDs piratas que viraram febre no país. A polêmica prosseguiu nos veículos de comunicação devido a afirmações de que o filme seria fascista, por defender a postura autoritária e violenta do BOPE no Rio de Janeiro.

Porém, a publicidade e exposição que estes filmes tiveram na mídia não são os únicos fatores que explicam seu sucesso. Carandiru e Tropa de Elite se inserem em um grupo de filmes brasileiros que tematizam a violência urbana, favela, criminalidade, relação entre os policiais e traficantes, que tem chamado a atenção do público e gerado retorno financeiro, principalmente depois de Cidade de Deus (2002). O veterano Hector Babenco, diretor de Carandiru, já explorava estas questões em Pixote, A Lei do Mais Fraco (1980) e Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia (1977). José Padilha, por sua vez, antes de fazer seu primeiro longa de ficção, também retratou a história do seqüestro de um ônibus na zona sul do Rio de Janeiro no documentário Ônibus 174 (2002).

Além da temática, já validada por grande parte do público brasileiro, os filmes retratam o cotidiano de duas instituições, a prisão e o BOPE, criadas para garantir a ordem social. Desta forma, as produções tocam em uma questão que preocupa muito a classe média em um país subdesenvolvido - a segurança. De acordo com os anseios deste público, as tramas terminam com a repressão, por meio da violência, dos agentes causadores do caos. A morte do traficante Baiano pelo novo capitão da tropa de elite, André Matias, e o massacre dos detentos de Carandiru pela tropa de choque da PM, servem como uma espécie de catarse para os espectadores que vivem diariamente situações de insegurança pública.

A construção dos personagens e a forma com que conduzem as narrativas também podem explicar, de certa forma, a adesão do público. A primeira voz que escutamos em Tropa de Elite é a de Capitão Nascimento que nos situa na trama, enquanto assistimos a cenas de um frenético baile funk cheio de luz, cores e música vibrante em um morro do Rio de Janeiro. É interessante analisar o caráter de Capitão Nascimento, uma espécie de super-herói justiceiro da classe média brasileira, temido, incorruptível e competente em sua missão de exterminar os bandidos. Um salvador em um país em que a corrupção policial é uma constante. Sua narração em off é um mecanismo importante para a proposta do longa, pois facilita a entrada do espectador e o conduz durante o filme, além de aproximá-lo do protagonista. Porém, esta opção narrativa produz duas vozes, o que pode gerar uma confusão do que é o discurso interno (do personagem) e o externo (do diretor), na percepção do público. Esta pode ser uma das razões pelas quais atribuiu-se ao filme o rótulo fascista e de fazer apologia da violência.

A opção em ligar as histórias dos presidiários de Carandiru ao médico, inspirado em Draúzio Varella, funciona de forma similar. Este personagem, assim como os espectadores, é um estranho no universo carcerário. Aspecto evidente na cena em que ele, no metrô, depois de sua primeira visita ao presídio, se questiona “O que é que eu tenho a ver com isso?”, refletindo se deveria continuar a realizar o trabalho na casa de detenção. Esta fala revela muito sobre a postura da classe média brasileira frente a um problema social. O médico é o mediador entre a realidade carcerária e o público. Se coloca como um observador curioso no filme, perguntando a uma série de detentos que passam por seu atendimento, o que os levou ao Carandiru. Nestas cenas, em que os internos, sentados em frente ao médico, contam suas histórias, a câmera está posicionada no ângulo de visão do personagem de Dráuzio, ou seja, acompanhamos os depoimentos por sua ótica.

A forma também indica os objetivos destas produções. Apesar de tratarem de problemas sociais brasileiros, não são filmes políticos, no sentido de adotarem um posicionamento crítico e proporem alternativas estéticas às questões no país, como as produções do Cinema Novo, por exemplo. Os temas não são abordados em sua complexidade, possivelmente pelo compromisso dos diretores em apresentar um diagnóstico da situação, o que é reforçado pela opção de uma estética realista e um estilo de filmagem similar ao documental. Carandiru não se aprofunda nas desumanas condições de vida no sistema prisional, assim como Tropa de Elite não toca no tema de descriminalização das drogas, optando por responsabilizar os usuários pela guerra entre policiais e traficantes. Além disso, em nenhum momento, questiona-se a existência do BOPE como um órgão criado com o objetivo de reprimir e conter a barbárie provocada pelas contradições sociais não solucionadas pelo Estado.

Os filmes têm o formato de thrillers sociais, cheios de ação, violência e suspense, seguindo as cartilhas do gênero. Não por acaso, as cenas mais dramáticas são suavizadas com pitadas de humor no decorrer das tramas. Outro fator muito emblemático do apelo comercial de Tropa de Elite é sua música-tema, que virou um hit nacional. O ritmo dinâmico, edição rápida e estética realista deste longa podem ser encontrados também na televisão e em filmes comerciais norte-americanos, aos quais o público está mais do que acostumado. Outro aspecto que aproxima Tropa de Elite de várias produções hollywoodianas é o conflito que move a trama: profissional cansado dos riscos de sua carreira, resolve largá-la, mas antes precisa realizar sua última missão.

É importante ressaltar que em um longa, a presença de elementos que o fazem ter maior diálogo com o grande público, não é, a priori, um fator que diminui sua relevância ou qualidade. Apesar do documentário Notícias de uma Guerra Particular (1999) já discutir o papel do BOPE na sociedade brasileira, Tropa de Elite foi o único longa que detalhou o treinamento de guerra, violento e humilhante, a submissão hierárquica, entre outras etapas necessárias para um policial entrar na tropa de elite da Polícia Militar. O filme tem o mérito de tornar estes mecanismos públicos. Um dos pontos altos de Carandiru, por sua vez, são as cenas do massacre, em especial, a que um cão policial anda em meio a corpos ensangüentados e topa com um gato, que, ao invés de fugir, encara-o. Esta imagem, que ganha mais força devido a acertada escolha da trilha sonora, funciona como uma metáfora do confronto. Outras seqüências de impacto são as da escada sendo lavada, da primeira vez, com água e sabão e da segunda, com sangue dos presos. São bons filmes comerciais. Porém, ao optarem por este formato, limitam a possibilidade de aprofundar as reflexões sobre problemas da sociedade brasileira.

Por Cyntia Calhado


Agosto de 2008