Ensaios

Através do espelho: visões de uma classe média refletida na tela de cinema

Quase Dois Irmãos (2004), Lúcia Murat
O Invasor (2001), Bato Brant

Nos últimos dez anos, a temática da favela se tornou recorrente nos enredos dos filmes nacionais, seja pelos tons lúdicos de Antônia (2006), por meio das renovações estéticas e polêmicas de Cidade de Deus (2002) ou no formato documental de Notícias de Uma Guerra Particular (1999). O assunto voltou agora em debate com o lançamento de Era Uma Vez, de Breno Silveira. Esta crítica, em geral, de cunho negativo, de que se fala muito sobre os excluídos, acaba enquadrando os filmes em uma nova vertente cinematográfica. Porém, são muitas as produções que fazem exatamente o contrário do que sugere este rótulo e se propõem a discutir o universo da favela inserido no contexto de oposição de classes sociais do país. Dois filmes da safra mais recente, Quase Dois Irmãos e O Invasor, retomam esta dicotômica relação entre o morro e o asfalto e discutem, não apenas a situação dos excluídos sociais, mas acima de tudo, os anseios e aflições da própria classe média. Assim como eles, há diversos outros longas-metragens nacionais que seguem o mesmo caminho, o que mostra que podem existir mais filmes sobre a classe média do que “filmes favela”.

Em Quase Dois Irmãos, a diretora Lúcia Murat optou por trabalhar diferentes contextos históricos e fazer uma breve reconstrução do Rio de Janeiro durante os últimos 50 anos. Passa rapidamente pelo final da década de 50, percorre com mais cuidado os anos de chumbo da ditadura e termina nos anos 90. Durante a carreira da diretora, esta preocupação de trabalhar temas em paralelo à história do país surge em obras como Que Bom te Ver Viva (1989) e Doces Poderes (1997). A enfática discussão sobre período ditatorial foi influência de sua biografia, já que ela foi militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), organização guerrilheira de esquerda, e por isso perseguida, torturada e presa em Bangu. O filme em questão narra a história de vida de dois personagens que constantemente se cruzam. Miguel, filho de médico, freqüentava o morro por causa da amizade de seu pai com sambistas, como o pai de Jorge. Quando crianças brincavam juntos embalados ao som do único elemento do filme que propicia uma possível conciliação de classe: o samba. Miguel e Jorge cresceram e cada um seguiu seu rumo, até se reencontrarem duas vezes na cadeia, primeiro como companheiros de cela e, depois, um de cada lado das grades: Jorge, prisioneiro e traficante, e Miguel, livre e já deputado.

Uma proposta diferente de abordar a questão de classe é a de O Invasor, baseado no livro homônimo de Marçal Aquino, que faz uma abordagem sobre o contexto contemporâneo brasileiro por meio da história de amigos de faculdade que abrem uma construtora e, quinze anos depois, se desentendem. Dois deles, Ivan (Marco Ricca) e Giba (Alexandre Borges), decidem matar Estevão, o sócio majoritário, que ameaça desfazer a sociedade na empresa de engenharia. A tranqüilidade acaba quando Anísio (interpretado pelo cantor Paulo Miklos), o assassino contratado, começa a exigir mais do que seu pagamento pelo crime, pois como ele mesmo antecipa, o dinheiro uma hora acaba. Mais do que isso, Anísio também afirma que não leva apenas documentos, dinheiros ou jóias, mas também a alma das pessoas. Em uma das cenas do filme, Giba encena para sua filha a fábula dos três porquinhos e o lobo mau, que simboliza uma alegoria para a relação entre os sócios e Anísio.

Nos dois filmes, cenários, diálogos e a trilha sonora são utilizados para caracterizar o lugar social de cada personagem. Assim, apresentam-se as diferenças sociais em justaposição, mostrando um pouco do universo da cada uma das classes sociais, como na cena que Anísio leva Marina (Mariana Ximenes), orfã de Estevão, para passear de carro na periferia e, em outro momento, nas cenas noturnas dentro das baladas em que eles vão. Essas diferenças aparecem em contraposição, por meio de embates diretos e não apenas em retratos isolados. Isso ocorre, por exemplo, quando os presos comuns e os políticos entram em conflito dentro do presídio, ou quando Anísio, o invasor, apresenta Sabotage aos sócios da empresa exigindo que eles investissem dinheiro na carreira do rapper.

Além disso, na medida em que há proximidade entre as classes sociais, surgem não apenas conflitos, mas estímulos positivos entre ambas, o que é exemplificado em Quase Dois Irmãos. Os meninos que brincavam juntos na infância se reencontram, em meados da década de 70, no presídio de Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro. Miguel (Caco Ciocler) se tornou um militante e foi preso por subversão, enquanto Jorge (Flavio Bauraqui) entrou no mundo do crime e foi pego em um assalto. Ele era o único preso comum em uma instituição que recebia basicamente presos políticos. Negro e pobre, ele era a principal vítima dos abusos de poder dos policiais, até que mais pessoas nas suas condições começaram a ser enviadas para lá. Formam-se então dois grupos polarizados: o dos presos políticos, que se organizavam em torno de concepções socialistas de coletivo, sociedade e divisão de bens, e dos presos comuns, que defendiam uma estrutura vertical, regida pela lei do mais forte e pelo instinto de sobrevivência individual. A diferença de interesse destes dois grupos é intensificada e concretiza-se com a construção de um muro que os separa fisicamente - metaforizando a divisão de classes. Porém, este convívio fez com que os prisioneiros comuns compreendessem a importância da organização político-social. Desta forma, a ficção retrata a criação de famosas facções, tais como o Comando Vermelho, que controlam o trafico no Rio de Janeiro. Já para os jovens de classe média, a proximidade com o outro social gera a revisão de seus próprios conceitos de igualdade, o que se torna evidente quando decidem espancar um dos presos comuns, que antes mereceriam os mesmos direitos que eles.

Esta mudança de ideologia ocorre principalmente por meio de Jorge, único personagem que transita entre estes dois universos. Em O Invasor quem assume este papel é Anísio, que se envolve com Marina. Enquanto ele a conquista, passa a ter acesso ao seu estilo de vida, partilhando dos mesmos valores, bens e círculos de amizade. Somente ter dinheiro não era suficiente, ele queria pertencer simbolicamente ao universo de classe média. Nesta mesma lógica, Anísio se torna parte integrante da vida de Ivan e Giba, freqüentando a construtora, dando ordens aos funcionários e, fazendo cada vez mais exigências, assume um poder que não tinha, gerando um desequilíbrio. Ivan, atormentado pela culpa e pânico, se descontrola e surta. Torna-se uma ameaça para Giba, que passa a temê-lo e a contar com Anísio para pedir conselhos. É a maior reviravolta da trama.

Desta forma, os filmes tocam em um tema muito atual da realidade do país. Com a intensificação da violência, a classe média vêm se fechando cada vez mais sobre si mesma, passando trincos, escondendo-se por trás de janelas gradeadas, vidros blindados e muros. E o cinema contemporâneo não poderia deixar de refletir a insegurança e o medo, a exemplo também de O Outro Lado Da Rua (2004), que também adota o ponto de vista da classe que mais se sente ameaçada.

Em vários momentos do filme de Lúcia Murat há o fantasma do medo, que é retratado por meio de Helena (Marieta Severo), mãe de Miguel. No início, ela receava a proximidade do marido com os sambistas da favela, assim como a mãe de Jorge se sentia em relação aos ricos que subiam o morro. O “outro” sempre estava relacionado ao desequilíbrio familiar. Depois, o seu grande temor se tornou o regime ditatorial, com seus braços repressivos e as organizações políticas militantes, já que ambos produziam os mesmos riscos contra a integridade do seu filho. Anos depois, ela teme a relação de sua neta Juliana (Maria Flor) com Delay (Renato de Souza), um dos traficantes que dominam a favela - e, principalmente, a subida dela ao morro. A insegurança impulsiona Miguel a rever Jorge (interpretados nesta fase por Werner Schünemann e Antônio Pompêo, respectivamente), não mais com seus ideais socialistas, mas como político, interessado em implantar um projeto esportivo e cultural naquela comunidade. A seqüência deste diálogo está fragmentada por todo o filme, lembrando sempre o espectador de que os protagonistas cresceram juntos e seguiram caminhos opostos. As diferenças são explícitas: Miguel é um político bem sucedido, vestido com terno e está livre, enquanto Jorge, então chefe do tráfico, está preso.

Em O Invasor, o medo também é uma constante. Logo na abertura, num plano-seqüência, o espectador é apresentado a Ivan e Giba, que encontram Anísio para fecharem os detalhes do crime. Nesta hora, não se conhece a figura de Anísio, pois a câmera é seu próprio ponto de vista. Desta forma, o diretor Beto Brant gera angústia no espectador, que observa o desconforto de Ivan e só vai conhecer a imagem de Anísio depois do crime. Além disso, acompanha-se a crescente insegurança de Ivan desde o início, quando ele está indeciso sobre o plano de matar Estevão e, depois com medo de Anísio e de ser descoberto como mandante do crime. Passa a andar armado e a desconfiar de todos à sua volta. Sua sensação de culpa é proporcional ao medo que sente, gerando uma loucura tão grande a ponto de confessar tudo à polícia. Por meio de uma montagem dinâmica, cenas aceleradas e uma trilha sonora de rock pesado, o diretor expressa a confusão mental do personagem, permitindo que o conflito interno de Ivan pudesse ser acompanhado pelo espectador. Enquanto isso, Ivan apaixona-se pela prostituta Cláudia (Malu Mader), apegando-se a ela como se encontrasse a imunidade e salvação para seus problemas. Neste momento, ele recorre justamente a um personagem marginalizado para se confortar, assim como Giba, que vai atrás dos conselhos de Anísio para decidir o que fazer para conter a loucura de Ivan.

Beto Brant faz ainda o retrato de uma classe média hipócrita e cínica. Este papel é encarnado principalmente por Giba, que por um lado é um engenheiro de sucesso e pai de família atencioso e, por outro, é um arrivista (tanto quanto Anísio) e tem parte na sociedade de um prostíbulo. Falso, consegue viver estas duas vidas, sempre representando papéis, assim como quando fingiu assombro no momento em que foram descobertos os corpos de Estevão e da mulher. Parece muito seguro, confiante em sua impunidade e não é abalado pela culpa, apenas pela ameaça que Ivan se tornou.

O cinema nacional já retratou, em outras épocas, a periferia resgatando os excluídos sociais para o centro da discussão, como fizeram, por exemplo, Rio 40 Graus (1955) e Cinco Vezes Favela (1962). Durante o Cinema Novo, falava-se muito do nordeste, do cangaço, apesar de ter filmes exemplares como Terra em Transe (1967) que colocavam a classe média como protagonista. Já no início dos anos 90, surgiram mais filmes como Um Céu de Estrelas (1996) e Terra Estrangeira (1995) e hoje a classe média está presente em filmes mais comerciais como Se Eu Fosse Você (2006) e Meu Nome Não É Johnny (2007), nos irônicos Cronicamente Inviável (2000) e Saneamento Básico (2007) e, principalmente nos trillers urbanos como Nina (2005), A Concepção (2006) e no recente Nome Próprio (2008), estes últimos com foco em personagens jovens. Nos dois filmes em questão há também o interesse de falar sobre as gerações mais novas, o que é explorado retratando como elas se aproximam do "outro", seja de forma inocente e romântica, como faz Juliana, em Quase Dois Irmãos, ou da maneira inconseqüente e radical como Marina de O Invasor. Além disso, é retratada uma distância social que envolve pertencimentos simbólicos, fugindo de estereótipos e enriquecendo a discussão que poderia ficar no nível estritamente econômico do conflito de classe.

Por fim, os personagens de Lúcia Murat perdem complexidade psíquica para defender a tese sociológica proposta. Em geral, eles perdem autonomia e parecem agir em função de justificar a relação entre violência, pobreza, cor e origem de classe. Em geral, eles perdem autonomia e parecem agir em função de justificar a relação entre violência, pobreza, cor e origem de classe. Já na obra de Beto Brant, pouco se questiona se a profissão do matador é ou não ilícita, da mesma forma como Giba é dono de um prostíbulo sem gerar muitas surpresas. Assim, no primeiro filme a naturalização simplifica a análise, enquanto no segundo, ela funciona como uma crítica e propõe uma chave para compreensão da realidade do país.

O que salta aos olhos é que os filmes caracterizam uma classe média aterrorizada e acuada, por medos muitas vezes irracionais, um dos problemas mais prementes no contexto brasileiro contemporâneo. Esta classe é assombrada por uma instabilidade social e flutua entre a certeza de ter poder aquisitivo e status, enquanto é ameaçada de perder seus bens e ficar à margem. Esta fragilidade, caracterizada pela ausência de perspectivas de equilíbrio e de conciliação com outras camadas da sociedade, gera uma insegurança constante.

A conclusão das tramas é bem pessimista. Em O Invasor, Ivan se entrega para a polícia e esta se mostra corrompida e corrupta quando vai ao encontro de Giba, não para prendê-lo, mas para contar a ele sobre o amigo delator. Já em Quase Dois Irmãos, Juliana é estuprada por um grupo rival do seu namorado, Delay, e vai parar no hospital. Neste sentido desesperançoso, a frase final de Miguel no filme de Lúcia Murat, "temos todos duas vidas, uma que sonhamos e a outra que vivemos", soa bem representativa.

Por Camila Fink


Setembro de 2008